terça-feira, 27 de outubro de 2009

Raposa

.
.....Estava no meu canto, sentado, e o pensamento dançando, voando no nada. E eis que soou um regougar que arranhou meus sentidos e sem um pingo de dó o meu doce silêncio esbanjava deleite em abocanhar.
.....Não reparei por qual brecha entrou e nem poderia imaginar que o alimento um dia ofertado tornar-se-ia em tamanha ingratidão. Uma avidez que de mim roubou a temperança que nos tempos de calma eu aqui cultivara.
.....Uma fome plantada desde a última vez em que invadira o celeiro e de minha alegria se fartara até vomitá-la em forma de fel, dispersando um azedume que apagara da mirra o perfume que enchia a casa.
.....Sua acidez ofuscou os sorrisos e corroeu os meus ouvidos. Perdida no compasso, uma surdez encobriu dos acordes as notas e a rouca voz intimidada silenciou.
.....Depois de satisfeita, fugiu em debandada, pisoteando os campos e destruindo os rebentos com a sua face mais crua. Mas amanhã certamente se derramará a chuva que brotará o renovo da terra para que mais uma vez os campos tornem a frutificar.
.

.
.

sábado, 19 de setembro de 2009

Seleção Natural

.
...........Ainda que a abóbada celeste estivesse encoberta por um manto nublado e a expressão do dia em sua plenitude fosse abafada, eu sentiria o mesmo alívio no qual meus pensamentos se deleitam neste momento. No entanto, hoje o firmamento fez questão de romper-se em azul turquesa. E essa manhã que contemplo revela em mim a grandiosidade que há em estar vivo. Toda e qualquer esperança de aqui retornar já havia se esvaído, liquefeita em meu suor frio, saciando a sede voraz do caos que me envolvera. Ontem certamente seria a minha última noite. Era a inevitável chegada ao fim da linha, e o raiar da luz no fim do túnel surgiria tarde demais. Mas aqui estou eu, admirado pelo fato de ainda poder tragar o ar e sentir que minha pele conserva o seu calor. Eu sobrevivi. E não foi pelo mérito da coragem de um grande guerreiro. Antes, o receio de ficar eternamente aprisionado nas trevas foi o que me susteve. Toda aquela aplaudida bravura emergiu na mesma proporção em que meu pavor crescia. Fui honrado simplesmente por servir de canal ao instinto. Não houve tempo para a razão premeditar ação alguma. Tudo ocorreu meramente por um reflexo. O terror despertou em mim um outro eu numa fração de instante e a covardia se tornou em destemor pela força do medo. Parece um grande paradoxo, mas não é. Apenas reconheço que meu corpo agiu guiado por algo muito maior do que meus limites poderiam conter. Fui apenas um instrumento para os incontestáveis desígnios da vida. Eu e a minha natureza lutamos e juntos triunfamos. Se devo ser reconhecido por este ato, não sei. Mas o pulsar de minhas veias foi a maior recompensa que eu pude conquistar.






sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Moldura

.
Canção de outrora
Nascida em louvor.
Me lanças agora
As juras de amor.

A cor apagada
Rabisca na tela,
Vagueia borrada
Em fogo e trégua.

Na voz do calado
Renasce o traço.
A obra e o quadro
Cantando refaço.

Assopra a sujeira.
A foto na estante,
Sem pó e poeira,
É a mesma de antes.
.
.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O Buraco

.
.......Surgiu um buraco bem no meio do meu quintal. É um rombo que, de tão feio, se enxerga até mesmo depois de fechar os olhos. Tão expressivo é, que seria demasiada cara de pau dizer que meus olhos já não tenham andado por lá. E a imagem fica cravada na retina. Não sei se o abalo fora provocado por casualidade da natureza ou por algum mal intencionado que tenha se empenhado em me preparar uma tocaia. Esse alguém eu desconheço. Pode ter sido qualquer um que por aqui tenha passado, ou até mesmo eu, desvairado, merguhado em meus devaneios.
.......Sentenciar um culpado é o que menos deveria me importar agora. A fenda é ameaçadora, e tratar de recompor o assoalho é bem mais urgente do que encontrar o causador de tamanha inquietude. Será mesmo? E se depois de todo um dia de labor, amanhã tudo voltar ao estado em que hoje se encontra? Valeria a pena me arriscar a ver todo meu esforço sucumbir uma outra vez? Por onde começaria então? Como poderia eu sair à caça por um fulano, se nem sei por onde pairava minha cabeça durante a noite passada?
.......Enquanto não encontro o motivo, é melhor disfarçar esse perigo em forma de horror. Qualquer um cabeça de vento feito eu pode só se dar conta da queda quando sentir um osso se arrebentar por dentro das pernas. Então não adiantaria apenas maquiar. Assim, seria ainda maior a chance de algum desavisado se acidentar. É hora de eu encurtar as mangas e por mãos à obra antes que alguém se espatife. Aí sim, teria eu certeza de ser culpado por alguma coisa. Não teria mais nenhuma transversal para me desviar dos fatos. A dura verdade: a armadilha mais penosa é do que qualquer trabalho braçal do qual venho tentando a todo custo adiar. Já é tempo de agir. Não quero carregar comigo o jugo do remorso.
.......Ferramentas à mão. Mas ainda não sei com o que preencher o vazio. Além de cavar o meu chão, o maldito levou consigo a terra que ao piso servia de sustento. É perturbador o fato da superfície que outrora me susteve ter se tornado em algo diametralmente oposto: Uma verdadeira cilada. Tudo num abrir e fechar de olhos. Entre um tic e um tac. Ou terá sido durante o lento e contínuo trabalho em que as formigas levam toda uma estação para terminar?


quinta-feira, 9 de julho de 2009

Dama da noite

.
Liberta surge a noite
Sobre o sol afogado, apagado.

Me afaga e me bate.
Meu nome clama e grita:
Anseia em mim companhia.

Sonho de preto manchado.
Me sacode, sufoca
E arranca do sono.

Sou ferido, desejado.
Em trevas, solidão
Faz de mim o seu trono.

Se despe, me abraça
E me lambe o pescoço.

Da pele, o calor
Pulsante em silêncio
Liquefeito, ela come.

Em saciada frieza
Meu corpo deixa
Empalidecida fome.

Enfim, me liberta a dama
Sob o sol, gelado, apagado.
.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Vinum acre


.............O saca-rolhas abriu a garrafa outrora selada. Do gargalo, o aroma frutado da bebida emergia em carícias às suas narinas. Derramou o púrpura suco das uvas até a borda dos cálices, afogando todas as aflições no tinto sangue de Merlot e ocultando sob si toda angústia. Esbanjava em cânticos e danças e transbordava seus lábios em júbilo. Deleitou-se perdidamente no macio sabor do vinho, permitindo-se ser embalado pela distração da embriaguês. Deixou todos os barris abertos, esquecendo-se dos dias que se sucederiam. Hoje, restava apenas a acidez âmbar do vinagre para a sede de sua tristeza saciar.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Bossa 'N Roll

.
Quisera eu iluminar-te
Da sombra trazer o fulgor
Colher da terra o aroma
O manto, essência compor
Teu Cheiro, perfume de flor
Em canto tua boca brotou

E o batom que te beija,
Com minha boca apagar...

Vou soprar no ouvido a volúpia
E sentir pelo corpo arrepiar.

Pele desnuda em desejo
Vem sangue meu despertar.

Em ti pintar a mordida
Tua carne quero molhada,
Alma em mim derretida.

De tua garganta ouvir um gemido
E em teu gozo verás meu sorriso.
.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Capuccino

.
Desejou
Lá estar
Um dia.

E agora?

Tremula.
Hesita.
Cambaleia.

Então, toca.

Não calor
Exala tal
Como ouvira.

Mas prova.

E o sabor
Nem pra mal
Sentir há.

Como poderia?

Nem cacau
Café, canela
Ou chantilly.

Água fria.

Era o que
Não eu
Queria pedir.

Desperdício?

Num gole vira
Mas no fim
Vomita.

Sim. E não.

domingo, 19 de abril de 2009

Rédea

.
Fugiu da sombra da toca
Abriu as cortinas
E ao mundo se mostra.

Saiu da beira do tudo
E hoje decidiu
Ser a dona de seu mundo.

Não mais viver à deriva
Nem ocultar-se nas trevas
Ou chorar como menina.

Gira o leme como quer
E a sua nau conduzir
Ao norte, sul, inferno até.

Andorinha saiu a voar.
Tomou um sopro de vento
E alçou rumo por sobre o mar.



quinta-feira, 9 de abril de 2009

Desconstrução

.
A casa ficou torta, meu bem.
Ontem passou um vendaval

A Chuva furou
E o vento arrancou
O nosso teto.

Eu bem que tentei consertar,
Mas acredite, não vai dar.

A porta emperrou,
O vidro trincou
E a janela quebrada.

Não adianta nem chorar
Que não dá pra endireitar.

As colunas `tão bambas,
O reboco rachado
E o chão amarrotado.

As paredes já não seguram os quadros
E o jardim está despenteado.

Vou-me embora apressado
Antes que em mim caia
O restante do telhado.









quinta-feira, 2 de abril de 2009

Doce



A campainha tocou? Não. Ele arrombou a porta. Ou talvez eu a tenha deixado destrancada. Não me recordo muito bem. Apenas me lembro que eu estava um tanto recluso. Tentava esquecer a bagunça que assolava o mundo naqueles dias. Na bandeja, trazia uma folha riscada com a minha letra. Mas eu não havia escrito carta alguma. E sobre o papel, o doce. Como ele poderia saber? Um blefe, talvez. Meu olhar furtivo me denuncia. E em seu rosto, brota aquele sutil ar de riso. Logo me ofereceu. No entanto, nem um dedo ousa se mexer. Uns passos à frente, ele se aproxima juntamente com aquele cheiro que dá água na boca. Se delicia, pode pegar. Permaneci imóvel, todavia. Não satisfeito, põe aquilo a meio centimetro de minhas narinas. Eu apenas temia. É teu. Deixou o prato sobre a mesa e deu de costas. Nem penso. O impulso fez sentir-me um predador. Foi numa bocada só. Como se atreve? Mas... Não! Você nunca irá entender. Vou-me embora. E em meus manjares nunca mais hás de te deleitar.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Insônia

.
Não há um alguém sequer que faça um barulho.
Do presente, o livro, papel desembrulho.
E nem ouvidos tem pra ouvir minha voz.
Os minutos se passam, as folhas à sós.
Cento e tantos canais na tevê, tudo em vão.
Deixa soar alto essa música, então!
Nem isso traz de volta o contento.
Toda partitura aqui toca em desalento.
Percussão sem compasso, a voz desafina.
Apenas ruídos sem cor, nem harmonia.

Rima se escondeu, caiu da mão.
De mim fugiu toda a inspiração.
Navegar na rede, nem isso interessa.
Vou sair, correr, exercitar a pressa.
Mas preguiça o corpo consome.
Deitar, dormir. Esse é o nome!
De costas, de bruço, cabeça pra baixo...
Nem da cama hoje eu tenho um abraço.

Abro a janela, dia novo a raiar.
A cama não me quis, fui eu pro sofá.


segunda-feira, 23 de março de 2009

Parcial


Venha se encontrar comigo. Já menti pra todo mundo. Eu 'tô morando em outro lugar. Aqui vai ser difícil alguém nos achar. Toma um banho. Traz o colar e as esmeraldas. Põe aquele vestido vermelho e o Chanel que eu te dei. Pega o taxi e segue as minhas coordenadas. Quando você chegar, vai ver o quanto aqui é bonito. Eu fugi de todos e tudo ficou mais facil. Eu já tenho uma nova vida. Do meu passado, agora só você. Mas por favor, não me traga as lembranças que eu deixei para trás. Quero apenas, teu corpo, teu sorriso e teu cheiro. Você é a única parte da qual sinto falta. Mas faz de conta que não me conhece. Quero ver novamente aquele olhar tímido da primeira vez. Como se não houvesse página arrancada atrás deste capítulo. Nada foi deixado pelo caminho. Um perfume distinto me rapta do enredo. Ela traja um vestido de festa e ostenta jóias brilhantes. Olha para o relógio a cada minuto. Espera impacientemente por alguém que nunca chega. Vez ou outra sussurra umas palavras ao ar. Eu estou esperando por você, mas não é aqui. Te vejo de longe. Porque trouxeste tuas malas? Não pedi para não tornar à tona o passado? Na verdade, eu desisti de tudo. Desculpa ter feito você esperar tanto, mas eu não tive coragem. Agora eu já fui embora. E voce não sabe como voltar. Ao lado do jovem, a senhora vestida para uma noite de gala. Deve estar ansiosíssima para o evento. As pernas inquietas e o olhar grudado pulso. Ainda falta algumas horas para o cair da noite.

terça-feira, 17 de março de 2009

(Im)Perecível

.
Um cálice de choro
Da dor, faz um côro.
Submerge o sorriso
Sem cor, nem sentido.

Senta à mesa e se farta
Amargor, deixa em carta.
No adeus, sua cura
À navalha, a carne fura.

Descortinada janela
Desnuda a pele dela.
Partido em cacos o espelho
Mostra o tapete vermelho.



segunda-feira, 9 de março de 2009

Censurável

.
Grã-fino palanque armado
Pecadilho irreversível, consternar
Febril, guloso, emético
Minha janela antiga
rapto sinfônico, A mirar
Perdoa. Abaixa a temperatura
Arreda extinta ira
Isolando em recôncavo teorema
Caduco desabrigo, cemitério.





sábado, 28 de fevereiro de 2009

Ela


Ela, atrasada, cruza a sala de aula carregando a enorme mochila nas costas e uma caixa de Carlton no bolso ao lado. O ar agressivo e o semblante exalava um mistério que provocava medo e encanto. Seu olhar, a roupa, a postura... Tudo realçava a sua beleza original. Ali mesmo eu antevi uma parte do que nós iríamos viver. E ainda fomos muito além.

Bom era sair pra dançar até Ela me carregar de volta pra casa. A nossa casa. Dividimos o mesmo teto! Nunca vivenciei tanto em tão pouco tempo... Mas o que eu cria durar ainda alguns anos está se mandando pra Brasília. Até ontem, eu ainda não acreditava nisso e torcia para Ela ficar. Já entendi as razões. Ela se vai mesmo. Da vida, o doce e o amargo. Sentirei falta dEla, da conversa fiada no boteco da esquina e de corrermos (como) loucos na madrugada silenciosa de Icaraí (risos). É moça, sentirei saudades. Vez ou outra ainda ouço Ela tocando guitarra no quarto dos fundos.




sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Requiem



Liberta-me, oh alma penada!
Destituída és desta grei
Por terra tua senda lançada
Aos vermes já te entreguei.

Sai de casa, devolve minha vida!
Por sete mãos trancada estás
Em sepultura, tua carne jazida
Sob tua lápide, dorme em paz

Em tua pele fria, faca amolada
Sobre teu corpo ferida não faz
Nem bala ardente por arma atirada
Pode afligir o que não vive mais

Todo ferrolho está desatado
Pode ir embora, já te libertei
Eu lancei fora teu corpo estragado
Mas tua semente em mim conservei.


Pés descalços


Caminhando sozinho ao som de uma música qualquer
e as idéias sempre pairando sobre a lua...
Ao som dos acordes, levava minha senda submerso no nada.
Seguia aquele andar maquinal, desprovido de qualquer propriocepção.
Uma topada me desequilibrou o corpo. Nada novo.
Sem sequer conferir o anteparo que causara tal embaraço,
Prossegui sem olhar pros lados, ignorando os acidentes da estrada.
O compasso que embala minha caminhada fora arranhado por outro tropeço.
Encabulado com as pessoas que me entreolhavam,
permaneci com a rígida cerviz, seguindo pela rua...
Nao me importava a paisagem, o frio, ou qualquer outro transeunte.
Trilhava por minhas veredas apenas pela canção...
-Ei, moço! Gritou um senhor.
Sem o menor interesse, tirei meus fones, por cortesia.
-Não acha imprudente percorrer essa estrada tão exposto?
-Como?
-É perigoso andar por aí com os pés desprotegidos!
-Meus pés estão devidamente cobertos. Respondi.
-Estás enganado, meu rapaz, porque eu os vejo despidos.
Eu, pensando se tratar de um louco, um bêbado, ou as duas coisas, falei com rispidez:
- Eu nunca saio de casa descalço.
Dou dois ou três passos adiante, e o homem exclama:
-Veja teus pés!
Já sem a menor paciência, incrédulo, olhei para o chão e vi que meus pés estavam completamente nus. E de tão calejados, não reagiram aos cravos e às pedras que os magoaram com as chagas já coaguladas...
Eu estava certo de ter posto um calçado, como sempre faço, antes de me pôr fora de casa.
Nesse instante, senti o calor do sangue enrubescer minha face.
Constrangido, respondi:
-Nao sei o que me ocorreu...
-Apenas, torna teus olhos para trás, meu filho!
Lá, bem longe, eu pude enxergar um sapato caído no chão...

Blog?! Pra quê?



Para proveitar o tempo ocioso, e também as horas em que não souber por onde começar a trabalhar as inúmeras tarefas pendentes.

Quando estiver transbordando de alegria e surgir o desejo de engrandecer as belezas que se escondem atrás da rotina. Cantar às mais simples gotas e também gritar a revolta e desabafar as angústias.

Ver, sentir, refletir, questionar... Buscar as razões e tentar forjar uma conclusão. Ainda que a resposta surja precipitada, já é ponto de partida rumo às outras possibilidades.

É um estímulo para analisar os mais diversos estados em que um ser humano puder ancorar. Perceber as influências do que nos cerca, trazer à luz o que outrora oculto e entender o que se passa dentro de nós. Em meio a toda essa confusão, ajuda a organizar os pensamentos, a direcionar o turbilhonante fluxo de idéias e até mesmo a ocupar a mente quando as razões se esvaírem e o tédio se instalar.

Uns rabiscos, umas gotas de tinta, e algumas pinceladas. Um ideal, um conceito, um movimento. Não necessitamos de muito para borrar o branco de uma mente vazia. Ou se a pintura, de tão feia, não puder ser retocada, que seja lançada fora. Não faltarão telas anseando por serem preenchidas.