terça-feira, 8 de junho de 2010

Dis.so.ci.a.ção

Invejo teu semblante tranquilo enquanto dormes em minha cama. E eu sigo tentando abafar os meus pensamentos ouvindo músicas de domingo à tarde, e tomando um chá quente para adocicar os lábios. A minha boca, porém, insiste em filar a amarga lembrança da última noite.

Uma chaga a me desatinar de maneira tal, que nem mesmo o torpor de uma embriaguês era capaz de anestesiá-la. Antes, apodera-se de minha fragilidade, e com apenas um golpe me arranca impetuosamente do meu eu, me fazendo tropeçar sobre a minha própria cabeça.

Eu queria fugir desesperadamente. E na partida precipitada, pisoteei a carne que já se achava magoada. O rosto, tomado de uma crua impassividade, ignorou impiedosamente a pele que outrora lhe servira de adorno. E os olhos, borrados em tons de púrpura, furtaram a acuidade que restava à razão.

Agora, ao conseguir unir os meus fragmentos de lucidez, logo me vejo com a carapuça atada. E tardiamente percebo que flagelar o sofrimento, é açoitar o meu próprio corpo. Uma visão que mui penosa é ao olhar, e me traz um aperto mais forte do que a dor visceral.


quarta-feira, 7 de abril de 2010

Detalhe


Entre salto e solado
Canta o chão batucado
Em compasso apertado
Soa o último chamado.

Foi dada a partida,
E a vida lá fora corrida
Andando mais rápido ainda.

Os quadros borrados
Nos vidros traçados
A paisagem fugaz
Desenha e desfaz.

E o trem prosseguindo,
Folhas e galhos partidos.
Vento que não volta mais
Pedaço deixado pra trás.








terça-feira, 27 de outubro de 2009

Raposa

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.....Estava no meu canto, sentado, e o pensamento dançando, voando no nada. E eis que soou um regougar que arranhou meus sentidos e sem um pingo de dó o meu doce silêncio esbanjava deleite em abocanhar.
.....Não reparei por qual brecha entrou e nem poderia imaginar que o alimento um dia ofertado tornar-se-ia em tamanha ingratidão. Uma avidez que de mim roubou a temperança que nos tempos de calma eu aqui cultivara.
.....Uma fome plantada desde a última vez em que invadira o celeiro e de minha alegria se fartara até vomitá-la em forma de fel, dispersando um azedume que apagara da mirra o perfume que enchia a casa.
.....Sua acidez ofuscou os sorrisos e corroeu os meus ouvidos. Perdida no compasso, uma surdez encobriu dos acordes as notas e a rouca voz intimidada silenciou.
.....Depois de satisfeita, fugiu em debandada, pisoteando os campos e destruindo os rebentos com a sua face mais crua. Mas amanhã certamente se derramará a chuva que brotará o renovo da terra para que mais uma vez os campos tornem a frutificar.
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sábado, 19 de setembro de 2009

Seleção Natural

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...........Ainda que a abóbada celeste estivesse encoberta por um manto nublado e a expressão do dia em sua plenitude fosse abafada, eu sentiria o mesmo alívio no qual meus pensamentos se deleitam neste momento. No entanto, hoje o firmamento fez questão de romper-se em azul turquesa. E essa manhã que contemplo revela em mim a grandiosidade que há em estar vivo. Toda e qualquer esperança de aqui retornar já havia se esvaído, liquefeita em meu suor frio, saciando a sede voraz do caos que me envolvera. Ontem certamente seria a minha última noite. Era a inevitável chegada ao fim da linha, e o raiar da luz no fim do túnel surgiria tarde demais. Mas aqui estou eu, admirado pelo fato de ainda poder tragar o ar e sentir que minha pele conserva o seu calor. Eu sobrevivi. E não foi pelo mérito da coragem de um grande guerreiro. Antes, o receio de ficar eternamente aprisionado nas trevas foi o que me susteve. Toda aquela aplaudida bravura emergiu na mesma proporção em que meu pavor crescia. Fui honrado simplesmente por servir de canal ao instinto. Não houve tempo para a razão premeditar ação alguma. Tudo ocorreu meramente por um reflexo. O terror despertou em mim um outro eu numa fração de instante e a covardia se tornou em destemor pela força do medo. Parece um grande paradoxo, mas não é. Apenas reconheço que meu corpo agiu guiado por algo muito maior do que meus limites poderiam conter. Fui apenas um instrumento para os incontestáveis desígnios da vida. Eu e a minha natureza lutamos e juntos triunfamos. Se devo ser reconhecido por este ato, não sei. Mas o pulsar de minhas veias foi a maior recompensa que eu pude conquistar.






sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Moldura

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Canção de outrora
Nascida em louvor.
Me lanças agora
As juras de amor.

A cor apagada
Rabisca na tela,
Vagueia borrada
Em fogo e trégua.

Na voz do calado
Renasce o traço.
A obra e o quadro
Cantando refaço.

Assopra a sujeira.
A foto na estante,
Sem pó e poeira,
É a mesma de antes.
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terça-feira, 4 de agosto de 2009

O Buraco

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.......Surgiu um buraco bem no meio do meu quintal. É um rombo que, de tão feio, se enxerga até mesmo depois de fechar os olhos. Tão expressivo é, que seria demasiada cara de pau dizer que meus olhos já não tenham andado por lá. E a imagem fica cravada na retina. Não sei se o abalo fora provocado por casualidade da natureza ou por algum mal intencionado que tenha se empenhado em me preparar uma tocaia. Esse alguém eu desconheço. Pode ter sido qualquer um que por aqui tenha passado, ou até mesmo eu, desvairado, merguhado em meus devaneios.
.......Sentenciar um culpado é o que menos deveria me importar agora. A fenda é ameaçadora, e tratar de recompor o assoalho é bem mais urgente do que encontrar o causador de tamanha inquietude. Será mesmo? E se depois de todo um dia de labor, amanhã tudo voltar ao estado em que hoje se encontra? Valeria a pena me arriscar a ver todo meu esforço sucumbir uma outra vez? Por onde começaria então? Como poderia eu sair à caça por um fulano, se nem sei por onde pairava minha cabeça durante a noite passada?
.......Enquanto não encontro o motivo, é melhor disfarçar esse perigo em forma de horror. Qualquer um cabeça de vento feito eu pode só se dar conta da queda quando sentir um osso se arrebentar por dentro das pernas. Então não adiantaria apenas maquiar. Assim, seria ainda maior a chance de algum desavisado se acidentar. É hora de eu encurtar as mangas e por mãos à obra antes que alguém se espatife. Aí sim, teria eu certeza de ser culpado por alguma coisa. Não teria mais nenhuma transversal para me desviar dos fatos. A dura verdade: a armadilha mais penosa é do que qualquer trabalho braçal do qual venho tentando a todo custo adiar. Já é tempo de agir. Não quero carregar comigo o jugo do remorso.
.......Ferramentas à mão. Mas ainda não sei com o que preencher o vazio. Além de cavar o meu chão, o maldito levou consigo a terra que ao piso servia de sustento. É perturbador o fato da superfície que outrora me susteve ter se tornado em algo diametralmente oposto: Uma verdadeira cilada. Tudo num abrir e fechar de olhos. Entre um tic e um tac. Ou terá sido durante o lento e contínuo trabalho em que as formigas levam toda uma estação para terminar?


quinta-feira, 9 de julho de 2009

Dama da noite

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Liberta surge a noite
Sobre o sol afogado, apagado.

Me afaga e me bate.
Meu nome clama e grita:
Anseia em mim companhia.

Sonho de preto manchado.
Me sacode, sufoca
E arranca do sono.

Sou ferido, desejado.
Em trevas, solidão
Faz de mim o seu trono.

Se despe, me abraça
E me lambe o pescoço.

Da pele, o calor
Pulsante em silêncio
Liquefeito, ela come.

Em saciada frieza
Meu corpo deixa
Empalidecida fome.

Enfim, me liberta a dama
Sob o sol, gelado, apagado.
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